segunda-feira, 17 de maio de 2010

Entrevista com Rogerio Ferrari


O convidado que vem nos falar sobre Fotografia: Política, Ética, Estética é Rogério Ferrari, que trabalha como fotógrafo independente desenvolvendo o projeto Existências-Resistências, tema que retrata a luta por terra e autodeterminação de alguns povos e movimentos sociais. O projeto evidencia, através das imagens, publicação de livros, debates e exposições fotográficas, o lado desconhecido de conhecidos conflitos: Palestinos sob ocupação israelense; Curdos, na Turquia; Zapatistas no México; Movimento dos Sem-Terra no Brasil; refugiados palestinos no Líbano e na Jordânia; refugiados Saarauis no deserto do Saara e nos territórios ocupados pelo Marrocos; Mapuches no Chile, e os ciganos no Bahia. E retrata essas experiências em seu blog http://rogerioferrari.wordpress.com/. Confira a entrevista:

Em entrevista dada a um portal, você disse que não tinha muito dinheiro para financiar suas viagens e tinha que se hospedar na casa de pessoas dos povos que visitava. Qual o aprendizado tirado dessa convivência?
Todas as viagens foram feitas em condições básicas, mínimas. Esse limite cria situações que determinam o rumo do trabalho, desde utilizar uma quantidade pequena de filmes, a buscar formas alternativas de permanência. O limite, da mesma forma que restringe, é também o que determina e proporciona um resultado singular. Por exemplo, usando poucos filmes, temos que ter mais atenção, e ver e fotografar sem a compulsividade do click digital; de alguma forma já ir editando no momento do click. Sobre ficar ou não hospedado com as famílias, isso é indeterminado. O que ocorre, na verdade, é que encontro muita solidariedade. Isso possibilita encontros e apoios espontâneos. Sei que muitas fotos que fiz foram pela convivência, pela confiança e cumplicidade que estabeleci com as pessoas do lugar.
Você disse, também nessa entrevista que queria ficar longe da “retórica da arte pela arte”. Seu objetivo é chocar através das fotos. Por quê?
Não se trata disso. Quando publiquei o livro Palestina, A Eloquência do Sangue, que mostra a realidade dos palestinos sob invasão e massacre israelense, houve quem dissesse, comentando o trabalho, que era apelativo e desprovido de objetividade jornalística, porque era parcial, favorável aos palestinos. Ora, acaso, não devemos nos posicionar diante da vida? E, sobretudo, diante das injustiças? Acaso podemos tergiversar e estetizar a realidade de povos e pessoas violadas? Quando falo da arte pela arte como retórica, não é porque não reconheça a expressão artística como um sopro do espírito, e isso não tem carimbo ideológico. Mesmo assim, somos o tempo, e toda expressão humana é política. Se faço dois riscos, ou, se com um rigor técnico e estético crio belas imagens pelas imagens, submetendo a arte à simples estética e à um conceito, isso me parece retórica, ou qual seja o adjetivo para definir o descompromisso com a vida e a justiça.

Você toma a fotografia como posicionamento diante da vida. Qual é o seu posicionamento?
Não falo de fotografia ou de música como panfletos. Falo da sensibilidade e necessidade de expressar o nosso tempo. Se sou um ser vazio, fútil, indiferente à minha existência individual e coletiva isso estará refletido na minha forma de ser e expressar. A beleza, a dignidade, a dor, tudo é um todo. Neruda fala de amor e da luta, sem ser piegas nem panfletário. São coisas intrínsecas. Guernica é um grito, e, por isso, uma das mais impressionantes criações artísticas.
O que te faz escolher se dirigir ou não para este ou aquele conflito?
O fato de ter uma identidade com a questão em conflito, e também ter que delimitá-los, pois são muitas as lutas pelo mundo afora. Defini Zapatistas, no México; Sem Terra, no Brasil; Palestinos; Curdos, sob ocupação turca; o povo Saarauís (Saara Ocidental), ocupado pelo Marrocos; Mapuches, no Chile; os índios Tupinambás, e os Ciganos, na Bahia, porque através da fotografia quero contribuir com essas causas. Esses temas estão agrupados dentro do projeto Existências-Resistências.
No seu projeto “Existências/Resistências”, você deparou com pessoas que lutavam pelo direito de existir. Em nome de que, na sua opinião, esse direito lhes é tirado?
Do óbvio que já não se quer reconhecer. O fato do mundo e da maioria dos países estarem sendo governados de forma autoritária, onde a arrogância e o colonialismo negam o direito de povos e pessoas existirem com dignidade, de se autodeterminarem de acordo com seus próprios interesses e cultura.
Em entrevista você disse crer que havendo uma consciência da realidade, é possível transformá-la. O que você faz e o que falta fazer para transformá-la? A que você atribui a opção de tantas pessoas em simplesmente aceitá-la, acomodado?
A consciência só não basta, Quantas pessoas se sentem tranquilas por julgarem-se conscientes, mas, no entanto, sem levantarem da poltrona pra fazer algo a favor do que julgam melhor. Uma coisa é a consciência social, boa intenção, e outra é sentir a dor de viver numa sociedade violenta, individualista, onde a maioria das pessoas estão mal, sem dignidade, exploradas.
Olha o exemplo da fotografia, absolutamente elitizada. Há uma grande lacuna e limite na expressão artística/fotográfica quando só uma parcela, de classe média, pode expressar-se. Agora, com as ONGs, tem se feito muitas oficinas de foto, e isso, em geral, é parte de uma lógica perversa, quando, com raras exceções, alimentam a indústria da pobreza. Nas oficinas, meninos e meninas descobrem a fotografia e revelam-se como bons fotógrafos. Logo, com o fim do projeto, a realidade sócio-econômica, exclui a possibilidade de novos e diferentes fotógrafos. A estrutura que nutre e possibilita as oficinas é mesma que impossibilita que eles se emancipam como artistas. O que faço é insuficiente até porque a fotografia não muda a realidade. Não produz rupturas. Ela informa, denuncia, mudará algo em função do que comunica, mas definitivamente, é só uma imagem. Para poder fazer algo mais efetivo, como fotógrafo e como ser humano, devemos estar conectados com outros braços, em ações culturais que afirme novos valores. Pensamos que estamos optando, e isso é um grande engano. A apatia paralisa, e nos faz tragar interesses alheios, valores mesquinhos, sem ao menos indagar se é isso mesmo que penso e quero?

“Há dois pesos e duas medidas nessa questão: atentados são considerados terrorismo, e os assassinatos diários e bombardeios contra civis palestinos são ações militares por razões de estado”. Diante dessa sua frase devemos acreditar que ninguém é inocente? Qual é a situação de quem está no meio?
O trabalho sobre a Palestina, em particular, foi em razão dessa distorção deliberada. Qual a imagem veiculada sobre os Palestinos? Um conflito que há 50 anos é noticiado sem diferenciar as razões dos pretextos. A intenção mínima é confundir quando não desvirtuar. Os palestinos, graças à grande mídia e às agências de notícias comprometidas com os interesses sionistas são mostrados como algozes/terroristas. A lógica perversa onde a vítima vira algoz. Viu como na tragédia recente das chuvas no RJ a culpa foi para as vítimas? O livro Palestina, A Eloquência do Sangue, mostra o contrário. Acredito que o que faço contribui ao proporcionar uma informação independente, cujo propósito básico é mostrar as razões e emoções desses povos que lutam.
Por que a mídia mantém distanciamento em relação a esses conflitos?
O distanciamento como recurso para omitir e negar a existência do problema. Não é assim numa sociedade refém da TV? O que não é noticiado na TV parece não existir.
Por que, você diz, a “democracia burguesa é uma falácia”?
Uma democracia verdadeira é aquela que assegura direitos e oportunidades iguais para todos. Não na lei ou no papel, como está na Constituição. É inaceitável que a riqueza de um povo seja abocanhada por poucos, ou que a comunicação de um país seja propriedade de cinco famílias. E Que as instituições financeiras lucrem 100, 200% por ano e as ruas do país estejam repletas de indigentes. Você pode gritar, espernear, desde que esteja dentro desta ordem. Não é verdadeira a democracia sem justiça, onde a lógica de poder e a maneira de governar prioriza os interesses privados, de grupos econômicos, de latifundiários, de empreiteiras, etc. Olha a realidade do nosso país. A saúde pública, a educação pública. Acaso faz sentido delegarmos responsabilidade através do voto e acatar a democracia representativa como parâmetro? Quem manda deve obedecer, e a riqueza de um povo não pode ser roubada por uma elite voraz, cínica. Se cresço num barraco, com esgoto na porta, sem saúde, educação de qualidade, sem possibilidade de escolher se serei fotógrafo ou jardineiro, onde está o meu direito? A democracia verdadeira é incompatível com capitalismo.
Muitas vezes surgem na mídia, ou em discussões sobre ética, casos como o da tradicional foto da criança subnutrida que rastejava em direção à água enquanto urubus a cercavam esperando sua morte. Como você vê a postura desses fotógrafos que fazem prevalecer o registro fotográfico em situações em que eles poderiam agir de alguma forma para ajudar na situação que está sendo fotografada?
Cada fotógrafo terá ética, ou não. E cada situação exige uma resposta onde temos que avaliar qual a melhor atitude para não sermos nem cúmplice, nem espectador. Em todo caso, como fotógrafos, acreditamos que uma imagem pode ser eficaz, efetiva na denúncia de tragédias como essa. Acredito que podemos fazer a foto e também algo mais, ou até deixar de fazer a foto para impedir o que seria foco de uma imagem espetacular. Ao longo da história, a fotografia cumpriu papel importante para mostrar ao mundo grandes injustiças. Ocorre, no entanto, que a força e o significado da imagem pode ser diluída e distorcida, a depender da maneira como é veiculada, ou simplesmente não dizer nada se a capacidade de indignação de quem vê estiver golpeada.
Como você procura distanciar a sua fotografia da comum ideia que se tem que as fotos de conflitos são apelativas e sensacionalistas?
Faço o que sinto que devo fazer. Através da fotografia, como arte e documento, retrato a vida nos seus aspectos mais amplos; o cotidiano, a alegria, a dor e a luta.
Nas coberturas de conflitos, qual é a sua opinião sobre esse olhar que muitas vezes explicita mutilações e mortes?
Essas fotos podem ter efeito relativo. Como disse antes, a maneira como se mostra pode resultar numa banalização da tragédia, da dor, de forma a anular o efeito que se pretende, o de provocar reação, em lugar de naturalizar o absurdo. Vivemos em um tempo de grande perversidade, de confusão, onde o espetáculo dá o tom. Daí, a fotografia vive esse dilema, pois da mesma forma que pode denunciar pode vir a ser parte, também, da produção desse espetáculo que banaliza o sofrimento.

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